terça-feira, 21 de julho de 2009

Sobre o aprender a escutar

Texto retirado do livro Quem educa marca o corpo do outro da autora Fátima Freire Dowbor

Lembro-me de ter lido, muitos anos atrás, um livro de um psicanalista, Denis Vasse1, que me marcou enormemente por esta imagem que o autor traz: “Quando o umbigo se fecha, a boca se abre...”.

Essa singela frase simplesmente enviesou meu próprio corpo naquele então, e o enviesa até hoje, pelo fascínio e espanto que senti ao saber que é pela voz que nosso corpo descobre e confirma que não é mais extensão do corpo do outro. Ou seja, nosso corpo é simbolizado pela voz dos nossos pais. Dessa forma, somos marcados desde cedo pela força da palavra, que nos introduz no mundo dos significados.

As lembranças que tenho de como fui iniciada no aprendizado da escuta e, por conseguinte, da fala, estão ligadas à voz do meu pai, que preparava meu corpo irrequieto, que não queria dormir, ao som das suas cantigas de ninar.

De certa forma, acredito que a escuta se tornou algo de prazeroso e importante na minha vida de educadora por ter sido significada pela voz de acalanto do meu pai. Aprendi a significar a gostosura que era me sentir amada, naqueles momentos, ao sentir que ele dedicava seu tempo a mim.

Coisa fantástica é a memória corpórea... sua capacidade de se fazer presente, viva, gerando movimentos, gestos e gostos que vêm de um tempo que acreditávamos esquecidos... E, no entanto, a nossa memória afetiva se encarrega de nos trazer tudo de volta.

Fui iniciada também no ato da escuta por minha mãe; cedo ela me pôs nas malhas, nos fios, do possível texto do outro. Já pequena eu me exercitava nos enredos das redes de significados que me invadiam e, de certa forma, eu me via levada a sempre ressignificá-los.

Pergunto-me se não data dessa época meu prazer de brincar com o simbólico, meu fascínio, minha paixão, minha curiosidade sobre as coisas não ditas e as ditas além do querer dizer. Essas vivências da minha infância marcaram tanto meu corpo que a sensação que tenho é a de que, às vezes, ainda hoje, eu vejo com os ouvidos e escuto com os olhos... Sensação estranha? Sim, talvez, mas gostosa de ser vivida. Foi assim que o aprendizado do ato de escutar entrou na minha vida, fazendo parte da minha história e da minha forma de estar no mundo.

O ato de escutar o outro é hoje para mim, como educadora, uma das primeiras posturas pedagógicas que trabalho com o educador no seu processo de formação. Descubro e redescubro sempre com cada novo grupo que formo, pelas resistências encontradas nos diferentes e inúmeros corpos nos quais já “pus a mão”, que é uma tarefa difícil.

Pergunto-me constantemente o porquê da nossa dificuldade de escutar realmente o outro. Que acontece com nossa capacidade de escuta? Falta de paciência? Falta de curiosidade pelo outro? Falta de tempo? Falta de espaço interno?

Nas minhas andanças pelas escolas, o que tenho visto são corpos sempre tão apressados que não conseguem parar para escutar. Na maioria das vezes são corpos que, além de estar sempre apressados, estão tão “cheios”, talvez de si mesmos, que se encontram impossibilitados de construir espaço interno para a escuta do outro.

Se quisermos escutar o que o outro tem a dizer, temos de estar com nosso corpo “vazio” para poder recebê-lo e, dessa forma, ser depositário da sua fala. “Corpo cheio” é corpo sem espaço para o outro; o outro sobra, está a mais. Fica como se estivesse a ver navios que nunca ancorarão no porto.

É por meio da escuta da fala do outro que o educador realiza sua intervenção. Sem intervenção no processo do outro, o ato de educar perde seu sentido e cai no vazio. No entanto, o mais complicado é que a caída no vazio no processo de marcar o corpo do outro não está unicamente atrelada ao ato de intervir ou não. Podemos intervir e, mesmo assim, constatar a caída no vazio da nossa intervenção.

Portanto, para que nossa intervenção crie forma no corpo do educando, é preciso que exista um saber não só sobre sua história de vida, como também sobre seu aqui-e-agora que está a viver. É preciso que exista um estar com o outro.

Se o ato de escuta é percebido e exercitado como instrumento metodológico de trabalho, o educador tem condições de realizar uma leitura mais adequada sobre as necessidades daquele a quem educa. Aprender a escutar o corpo dou outro está relacionado com o aprendizado do diálogo.

Sem escuta não existe diálogo. O diálogo requer troca, requer espaço interno, curiosidade amorosa e disponibilidade para o outro. Não sei bem o porquê, no entanto sempre associo um corpo dialógico a um corpo generoso e com mobilidade. Generoso, para crer que o outro tem o que dizer, tem contribuições a dar. Mobilidade, para poder criar espaços, dar cabida ao outro corpo. Dialogicidade e generosidade são amigas íntimas na minha fantasia. Uma alimenta a outra, são parceiras.

Às vezes me pego sozinha observando os corpos das pessoas e fico fascinada ao descobrir o quanto eles falam. O quanto dizem, às vezes, o que não querem dizer, ou, quem sabe, o que não ousam dizer pela fala. Por isso, de certa forma, aprender a olhar o corpo do outro traz consigo o aprendizado de aprender a escutá-lo, a observá-lo.

O aprendizado da escuta, por sua vez, está relacionado com o da fala. Quando o corpo está aprendendo a escutar, ao mesmo tempo está aprendendo a estrutura da oralidade da língua pelo discurso do outro. Dessa forma, vai construindo sua intimidade com a oralidade. É essa intimidade que possibilita a busca de uma oralidade própria, de uma forma de falar única por anunciar/denunciar o sentir, o perceber como cada um está no mundo e se sabe nele.

A escuta é tão importante quanto a fala porque ambas, quando bem equilibradas, possibilitam o aprendizado do silêncio. Corpo falante em excesso é corpo que não experienciou situações de escuta, de ser contido; foi pouco marcado pelo silêncio do outro, teve menos chance de poder significar o silêncio, de poder descobrir que existem diferentes tipos de silêncios. Como, por exemplo, o “silêncio falante”, o que tem força de marcar o corpo justamente pelo não dito. Sem a experiência do silêncio, fica difícil percebermos a importância e a necessidade do momento da fala quando estamos educando.

Sempre me pego refletindo sobre o poder da fala, da palavra na educação. E, às vezes, fico me perguntando se não construímos, de certa forma, um “império da fala” nas escolas. Gostaria mais se tivéssemos construído um “império dos sentidos”! Na verdade, devo admitir que não gosto muito da imagem de império... No entanto, é a que me veio a esse momento, enquanto escrevo.

Brincando comigo mesma, acho que o gostoso mesmo seria se pudéssemos juntar esses dois impérios, o da fala e o dos sentidos, para possibilitar a todos a quem queremos educar a delícia do aprender a falar e do aprender a expressar seu sentir.


1VASSE, D. O umbigo e a voz. São Paulo: Loyola, 1977.

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